(Para ler ao som de Milton Nascimento)
Conto daqueles dias em que eu e minha família (que é imensa) sentávamos no quintal e comíamos uvas colhida ali mesmo. O quintal, aquele espaço cheio de cores e com aromas incríveis que se misturavam com o cheiro da fruta temperando a conversa e o riso.
Ali, na grama verde entre flores, parreira de uvas e temperos que eu iniciei minha vida com esse espaço de acolhimento que chamamos de quintal. Brincávamos e construíamos um mundo só nosso. Em troncos de árvores minhas cidades ganhavam vida com latinhas, caixas velhas e pedaços de pau. Embaixo da parreira de uva deitava na terra para ver as nuvens cruzando entre as folhas da planta construindo imagens que povoavam meus sonhos e a imaginação era um terreno fértil para novos lugares. Os sonhos que não envelhecem foram plantados ali no quintal com acolhimentos da casa de mãe. Meu espaço sagrado feito de simplicidade, afagos e boas pitadas de silêncio. Mas, mexeram no meu quintal. Vieram e derrubaram árvores, poluíram a fruta, expulsaram as crianças da brincadeira, definiram fronteiras e armaram o vizinho que se diz incomodado com a algazarra da criançada. Invadiram o meu aconchego com arrogância de quem ganhou o poder. E, como se não bastasse, querem impedir o riso e ainda insistem em apregoar que um só deus é a verdade. Um amigo poeta deixou um registro que serve como luva para os dias cinzas de hoje: a verdade absoluta é, na verdade, obsoleta. Grito! Ouçam meu grito. O espaço sagrado de escolhas minhas que vão da imaginação à fé passando pela sexualidade ou estética foi tomado por dementes que vociferam moralismos e apregoam a perseguição aos que assumem a prepotência. Liberam veneno em nossa comida e defendem que a arma é a solução para amenizar a violência. Grito! Ouçam meu grito. Da janela vejo ainda meu quintal. Mas estaria ele virando terra para o agronegócio? Invadiram meu sagrado quintal afirmando que vão mudar o país. O meu pensamento tem a cor do ocaso em dia de outono. Não estou só e resisto, muito tenho para falar. Grito! Ouçam meu grito. Quero o meu quintal. Aquele que a gurizada respirava o vento, jogava bola de gude. Tinha fruta laranjeira, uva e ameixa amarela. Quero meu quintal que tinha terra para sujar o pé e, no sol da manhã, comia um ovo retirado do ninho da garnizé. Quero meu quintal sem vozes dissonantes que perturbam o silêncio que sempre foi só meu, no quintal. Grito! Ouçam meu grito. Quero viver e ser livre. Hoje, inquietudes fazem de mim um sonhador de quintais. Fica a dica: Disco Clube da Esquina de Milton Nascimento e Lô Borges. 1972 Gravadora EMI- Odeon. (na capa dois meninos brincam na terra de chão batido) |
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