A vida seis meses depois
Moradores provam que é possível reconstruir o Arraial
Moradores provam que é possível reconstruir o Arraial
Seis meses se passaram desde que as enchentes e avalanches de terras inundaram e soterraram casas, ruas, vidas e a esperança no Vale do Itajaí. Os moradores do bairro Arraial do Ouro – um dos mais atingidos pela catástrofe de novembro de 2008 – ainda lutam para reconstruir. Os inimigos são o esquecimento e a lentidão do poder público.
Por ser um bairro assentado em uma área cercada por morros, o Arraial do Ouro sofreu danos quase irreparáveis em algumas localidades. Centenas de famílias perderam suas casas, móveis, utensílios domésticos e, principalmente, a única fonte de renda: a lavoura.
O acesso principal ao bairro já foi quase todo restabelecido e a vida parece ressurgir em meio a tanta dor e desesperança. Nos últimos seis meses, os moradores aprenderam a lidar com a insegurança e a longa espera por ajuda. Os prejuízos na rizicultura em Gaspar chegam a quase 50%; no bairro Arraial do Ouro ela foi praticamente dizimiada. Em função do volume de perdas, o governo do estado determinou um seguro agrícola de emergência aos agricultores que fizeram o custeio de suas lavouras por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf.
É um alento, mas não o suficiente para devolver o sono tranquilo aos agricultores quanto ao futuro. Por isso, muitos não esperaram a ajuda do governo e bancaram seus prejuízos. É o caso de Pedro Nicolau Sabel, 73 anos, que viu sua lavoura de arroz literalmente ir por água abaixo da noite para o dia. Ele calcula uma perda de mil sacas de arroz. Para se ter uma idéia, a produção de um ano fica em torno de 1.500 sacas. A grosso modo, Pedro retirou debaixo da lama 500 sacas, insuficientes para cobrir os custos de produção.
Logo após a tragédia, o agricultor iniciou a recuperação dos seus sete hectares de arrozeiras. Contraiu empréstimos bancários para si e para o irmão Daniel Sabel, também agricultor. A preocupação agora é o destino da montanha de barro retirada das arrozeiras. O custo para contratar tratores e caminhões é elevado, mas não tem outro remédio. Segundo o agricultor, a recuperação de parte da área de plantio soma mais de 40 horas de trator. E os custos continuam a subir. Pedro pretende deixar tudo pronto até o mês de junho, para começar a plantar a safra 2009/2010.
Ele conta que a água não chegou a invadir a casa onde mora com a família, mas todos ficaram isolados e sem energia elétrica por vários dias. Graças a um poço artesiano não faltou água na propriedade. Com vontade e muito bom humor, Pedro reconstrói sua vida na esperança de que tudo volte ao normal tão rápido como a chuva e o barro que vieram e levaram sua lavoura.
José e Norma Niesciur ainda não superaram o trauma. Eles se dividem entre morar no Arraial do Ouro e na casa dos filhos em Blumenau
Tábuas de lavar roupas reforçam a renda
O marceneiro Francisco Xavier Pitz perdeu os motores de oito máquinas que usava para tocar uma serraria no Arraial do Ouro. A casa onde vivia com a família foi invadida por uma lâmina de 60 centímetros de água. Mesmo assim, muitos vizinhos que não conseguiram chegar em suas casas se abrigaram na de Francisco. Aliás, a solidariedade foi determinante para que o número de mortos não fosse maior na tragédia do Vale.
Depois de ficar duas semanas longe de casa, que foi interditada pela Defesa Civil, a família Pitz retornou. Começou por limpar a casa e o terreno. Francisco conseguiu reparar as máquinas e já está de volta ao trabalho. Hoje, ele tenta equilibrar as finanças com a produção e venda de tábuas de lavar roupas.
O marceneiro pretendeu um empréstimo bancário para recuperar os estragos, mas desistiu no meio do caminho por causa da burocracia. Segundo a Defesa Civil, o morro na frente da casa da família Pitz apresentava risco de deslizamento, fato que se confirmou e muitas árvores caíram. Por sorte nenhuma delas atingiu a casa da família. “Aos poucos, as coisas voltam ao normal”, diz o otimista Francisco.
Trauma da tragédia é ainda difícil de superar, dizem moradores
O trauma do medo é o mais difícil de superar por quem passou por uma tragédia da dimensão da ocorrida no Vale. A chuva ainda assusta. “Quando ela vem forte, o ribeirão enche e dá muito medo”, admite Francisco Xavier Pitz. “Mas as coisas vão passar, pelo menos estamos vivos”, conforma-se.
A maioria das famílias já retornou para suas casas. Um grupo pequeno ainda enfrenta dificuldades de acesso. É o caso de Jose Rafael e Terezinha Pitz, visitados há pouco mais de dois meses pela equipe do Metas nos Bairros. De lá pra cá pouca coisa mudou. Um pontilhão continua sendo a única ligação entre a estrada principal e a casa do casal e de outras duas famílias.
Mais adiante, José Niesciur e a esposa Norma revelam em seus rostos que a tragédia marcou suas vidas. Naquele dia, Norma fazia companhia ao neto enquanto um dos seus filhos arrumava as telhas da casa para que a água parasse de molhar dentro. José trabalhava em um pequeno rancho do outro lado da estrada. A preparação para o Natal havia começado. O agricultor havia comprado a carne da ceia e iniciado a pintura da casa. Foi quando um barulho forte quebrou a tranquilidade do casal. Norma olhou pela janela e viu o mundo desabando bem em frente da sua casa. As residências localizadas um pouco mais abaixo simplesmente desapareceram em segundos. “Vi as telhas da outra casa indo pelos ares”, recorda.
Ela lembra de sair de casa segurando o neto e na mão de José. “A água estava na altura dos joelhos. O meu neto pedia para que não o deixasse morrer”. Norma ainda se emociona quando relembra as cenas, mas já consegue falar sobre a tragédia. A família se refugiou na casa de vizinhos. A água invadiu a garagem e atingiu o carro e a moto que o filho havia comprado recentemente. Móveis foram perdidos, a carne do Natal foi jogada no lixo, junto com o freezer.
José e Norma são gaúchos, moraram 20 anos no Paraná e estão há cerca de seis anos em Santa Catarina. O trauma só permite que eles passem alguns dias em casa. Logo voltam para a casa dos filhos em Blumenau. “Quando ouvimos qualquer barulho lá fora parece que vai acontecer tudo de novo”, desabafa Norma. O casal não chegou a perder o imóvel, mas Norma conta que o forro está danificado e que a casa possui rachaduras. Quando aos riscos de outros deslizamentos, ela não sabe dizer. “Os geólogos ainda apareceram para fazer o laudo e informar, com precisão, os riscos”.
A esperança fica mais viva quando se vê a lagoa do recanto de lazer Pesqueiro São José novamente repleta de peixes. Depois da perda que parecia irrecuperável, o lugar vai se transformando. Com muito trabalho, o casal Blásios e Nilza Luzia Knoth limparam o local e o preparam para reabrir as portas. Nilza admite que há ainda muito por fazer. Incansável, ela percorre a margem da lagoa retirando o entulho. O bar do Pesqueiro já está limpo. A mãe de Nilza, Elvira Schmitz, conta que precisou de muito esforço para tirar a lama que se acumulou. A família é um exemplo de força e coragem aos demais moradores do bairro. Após perder cerca de nove mil quilos de peixe, algumas lagoas, uma plantação de pinos e um campo de futebol, eles não perderam a esperança.
Esperança também é a palavra mais repetida pelo presidente da Associação de Moradores do Arraial do Ouro, Carlos José Junges, o popular Zecão. Ele tem a esperança de ver tudo recuperado o mais breve e avisa: “quando tudo estiver recuperado vou promover uma grande festa para a comunidade”. Por enquanto a preocupação dele é com a estrada geral que não está totalmente desobstruída e com sujeira de algumas ruas. Zecão e a família retornaram para casa há uma semana, e ainda vivem de sobressaltos com os “fantasmas” da tragédia.
Voz da comunidade, ele lamenta a falta de atenção do poder público. “O serviço de transporte coletivo está de volta, mas quando chove os ônibus têm dificuldades”, revela. Zecão lembra que muitos moradores dependem do transporte coletivo para ir ao trabalho”. Outra queixa é o fato do ribeirão ainda não ter sido desassoreado. Zecão também informa que existem pessoas fora de suas casas e que o governo já deveria ter construído casas para essas famílias. “Com tanto dinheiro que vem do governo, não custava usar esses recursos para recolocar essa gente debaixo de um teto”, dispara. A tragédia jamais será esquecida, mas é possível superá-la com a palavra mágica: reconstrução.